A Realidade do SaaS na América Latina
A narrativa popular pinta a América Latina como a grande fronteira de crescimento para a tecnologia, um mercado vibrante e pronto para ser conquistado. E, em grande parte, isso é verdade.
No entanto, quando mergulhamos nos dados, a realidade se mostra muito mais complexa, fascinante e cheia de contradições estratégicas do que os clichês sugerem.
A fonte para essas percepções é a pesquisa "Latam SaaS Survey 2025", realizada pela Riverwood Capital. Para estabelecer sua autoridade, basta olhar a escala: o estudo compilou dados de quase 150 empresas de SaaS, que representam mais de $2.1 bilhões em receita combinada, oferecendo um panorama robusto do ecossistema regional.
Nesta análise, vamos além dos números para extrair os sinais estratégicos que realmente importam para quem está construindo, investindo ou competindo no cenário SaaS da América Latina.
Este artigo vai revelar as descobertas mais impactantes e contraintuitivas que estão moldando o verdadeiro cenário SaaS da região hoje. Prepare-se para ver o mercado latino-americano de uma forma totalmente nova.
1. O Foco Doméstico do Brasil vs. a Expansão Regional dos Vizinhos
A primeira descoberta surpreendente é uma divisão estratégica clara na região. Os dados mostram que as empresas de SaaS sediadas no Brasil geram aproximadamente 93% de sua receita no mercado doméstico. Esse foco quase exclusivo no próprio país contrasta fortemente com a abordagem de seus vizinhos.Empresas da Argentina, Chile e México, por exemplo, obtêm uma parcela muito maior de sua receita fora de seus países de origem, muitas vezes adotando essa mentalidade desde o início. Para elas, a expansão regional não é uma opção, mas uma necessidade para escalar, com o México se destacando como o principal destino para essa expansão.
A implicação estratégica aqui é dupla. O vasto mercado brasileiro permite que as empresas alcancem uma escala significativa focando apenas em casa, mas isso pode retardar o desenvolvimento de "músculos" para a expansão internacional. Em contrapartida, empresas em mercados menores são forçadas a nascer com um DNA regional, construindo desde cedo a resiliência e a competência operacional necessárias para competir em múltiplos mercados.
2. A Monetização da IA é Contraintuitiva: O Valor Está na Inclusão, Não na Venda Separada
Contrariando a expectativa de que a Inteligência Artificial seria um novo produto a ser vendido, a maioria das empresas na América Latina está seguindo um caminho diferente.
O dado principal é revelador: 44% das empresas incluem os recursos de IA em seus planos de preços existentes, sem custo adicional.
Embora outras estratégias existam (29% incluem a IA em um plano premium e 18% cobram por uso), a tendência principal é a integração. A conclusão do relatório é clara: a IA está se tornando parte do produto principal, não um complemento pago.
Para fundadores e investidores, o recado é claro: na América Latina, a IA é, atualmente, uma ferramenta para aprofundar o fosso competitivo e aumentar a retenção, não um fluxo de receita imediato.
A aposta estratégica é usar a IA para tornar o produto indispensável e garantir a fidelidade do cliente a longo prazo, em vez de monetizar o recurso de forma isolada.
3. A Estratégia Tecnológica Dupla: Diversificação em IA, Consolidação na Nuvem
Existe uma tensão fascinante na estratégia de infraestrutura tecnológica das empresas da região.
No campo da Inteligência Artificial, a abordagem é de diversificação. Mais de 38% das empresas usam três ou mais provedores de LLM (Modelos de Linguagem Grandes) simultaneamente, com configurações como OpenAI + Gemini sendo comuns.
O objetivo é evitar a dependência de um único fornecedor e fomentar a inovação.
Em contrapartida, a estratégia para a infraestrutura de nuvem é a oposta: a consolidação. Quase 60% das empresas usam um único provedor de nuvem. A AWS reina como a espinha dorsal da infraestrutura na região, mostrando uma clara preferência pela estabilidade.
Isso sinaliza uma abordagem sofisticada de gerenciamento de risco: as empresas estão diversificando no campo da IA, que é volátil e experimental, para garantir flexibilidade futura.
Ao mesmo tempo, consolidam sua infraestrutura de nuvem com parceiros estabelecidos para garantir estabilidade operacional. A IA é tratada como uma fronteira de P&D, enquanto a nuvem é a base sólida sobre a qual tudo é construído.
4. O Desafio da Produtividade: Uma Lacuna Significativa em Relação aos Padrões Globais
Aqui está um dos fatos mais impactantes: a produtividade das empresas de SaaS na América Latina, medida pela receita anual recorrente por funcionário (ARR por FTE), está notavelmente abaixo dos benchmarks globais. Os números são diretos.
A mediana na América Latina varia entre ~50ke 70k de ARR por funcionário. Isso contrasta fortemente com a faixa de ~$150k a $200k para empresas de SaaS privadas globais.Essa lacuna não deve ser vista apenas como uma fraqueza, mas como a maior oportunidade de criação de valor no ecossistema.
Para fundadores, a mensagem é que a próxima fase de crescimento virá da maestria da eficiência operacional e da otimização das estratégias de go-to-market. Para investidores, este é o "alfa": identificar e apoiar as empresas que conseguirão fechar essa lacuna de produtividade será a chave para retornos excepcionais.
5. A Vantagem Oculta: SaaS Vertical Demonstra Retenção de Clientes Superior
Ao contrário do que se poderia supor, o SaaS Vertical (focado em um único setor) apresenta uma retenção de receita líquida superior ao SaaS Horizontal (que atende a múltiplos setores). E isso vale para todos os segmentos de clientes.
Para empresas focadas no mercado Enterprise, o SaaS vertical atinge ~107% de retenção líquida de receita, contra ~101% do horizontal. O mesmo padrão se repete para empresas focadas em PMEs (SMBs), com 97% para o vertical versus 89% para o horizontal.
Isso desafia a sabedoria convencional, que favorece o SaaS horizontal por seu mercado maior.
Uma hipótese provável, conectando este dado ao foco geográfico do Brasil, é que os mercados locais complexos e com regulamentações específicas (como fintech ou healthtech) criam o terreno ideal para soluções verticais. Essa especialização profunda gera produtos com um fosso competitivo quase intransponível, resultando em clientes mais fiéis e maior expansão de receita.
6. IA no Ambiente de Trabalho: Foco em Crescimento, Não em Cortes (Por Enquanto)
Em meio à ansiedade global sobre o impacto da IA no emprego, a pesquisa traz uma descoberta surpreendente: não há diferença significativa nas expectativas de contratação entre empresas que já lançaram recursos de IA e as que não o fizeram.Os números ilustram isso claramente.
59% das empresas com IA planejam aumentar sua equipe, um número muito próximo dos 56% das empresas sem IA que planejam o mesmo. Apenas uma pequena fração (3-4%) de ambos os grupos espera reduções de pessoal.
A síntese aqui é poderosa: as empresas na América Latina não estão usando IA para cortar custos porque seu maior desafio não é o excesso de pessoal, mas sim a necessidade de fechar a lacuna de produtividade mencionada anteriormente.
A IA está sendo implementada como uma alavanca para o crescimento da receita e da eficiência, não para a redução de despesas. A "falta de talentos qualificados", citada como principal barreira à adoção, reforça que o objetivo é aumentar a capacidade da equipe, não substituí-la.
Conclusão: Um Ecossistema de Contradições e Oportunidades
O cenário SaaS da América Latina é vibrante, complexo e forjando seu próprio caminho com estratégias únicas. Vimos um ecossistema dividido geograficamente, que usa a IA para aprofundar o valor do produto em vez de gerar receita direta e que enfrenta um desafio de produtividade que é, na verdade, sua maior oportunidade.
A questão que definirá a próxima década é se o ecossistema conseguirá alavancar a IA para fechar o abismo de produtividade com o resto do mundo, ou se a falta de talentos qualificados transformará essa oportunidade em um gargalo intransponível. As respostas a essa pergunta determinarão a próxima geração de vencedores na região.

